se descobrir é se destruir (não se ver é não existir)
Da jovem e talentosa dramaturga britânica Stef Smith, “Swallow” não é um texto fácil. Com temática pesada e narrativa entrecortada, pautada na busca pela existência de três figuras que passarão a se inter-relacionar ao longo de suas descobertas, traz em si uma série de desafios para as escolhas do encenador. A montagem do texto, inédito no Brasil, com direção de Bruno Perillo, responde bem a tais desafios, escolhendo por alguns momentos caminhar em direção a uma atmosfera lírica, quase etérea, contrastando com o concreto e terrível da dramaturgia.
Cercados de cacos de espelhos, as três personagens recortam a si próprio através da composição cênica, seja a partir da utilização do cenário (de Marisa Bentivegna) – uma plataforma que possibilita encaixes e desencaixes, permitindo que as figuras se mantenham numa reorganização constante, própria e espacial – ou da criação de imagens corporais e coreografias que contrastam delicadeza e tensão; o trabalho corporal de Marina Caron explora e expande os corpos possíveis do ator e das atrizes, também em permanente descoberta. Desse modo, a encenação acompanha a fragmentação do texto, ao mesmo tempo em que aproveita o jogo com as distâncias entre as personagens, criando relações que, ainda que fisicamente impossíveis, transmitem para o público a sugestão do peso (ou da leveza) de cada encontro.
Com figurinos (de Marichilene Artisevskis) em tons pasteis e uma luz (de Aline Santini) que não adiciona – até começar a nevar – cores nessa paleta, a crueza da vida vai sendo preenchida apenas pelas relações destas três pessoas, em transformação a partir do outro. São trajetórias que se esbarram de modo caótico e irremediável; a dramaturgia de Stef Smith nos conduz, através de narrativas entrecortadas como os estilhaços do espelho, até lugares inesperados, intercalando pitadas de humor e ironia com as tragédias do indivíduo e do coletivo.
Os cacos também fornecem recortes de luz que, mesmo talvez esbarrando em clichês, adicionam camadas de leitura à cuidadosa composição posta em cena. É uma potente lembrança de que tais histórias tratam-se de fragmentos em suspenso; um jogo entre a descoberta do recorte e o vislumbre de um inteiro.
A descoberta e a busca de si dentro de uma existência ampla são o mote do espetáculo, e as três personagens trazem distintas leituras sobre o que é o existir. Enquanto Sam (Dani Veiga) descobre a si mesmo enquanto transgênero – e tal caminho se constrói, inicialmente, na autoafirmação individual – Rebecca (Tatiana Thomé) se descobre na violência da relação com o outro, dos impulsos gerados pelo conflito e pelo embate. Já Anna (Cristina Cavalcanti) personifica uma descoberta de outra ordem: a do mundo, com suas guerras e terrores, mortes e perigos; uma descoberta que não mobiliza, mas sim, paralisa.
Tais figuras trazem consigo discursos distintos, e escolha acertada foi permitir diferentes construções de personagem para cada ator. Veiga, ator trans, traz consigo uma verdade muito potente e representativa não apenas nas falas mas em suas construções corporais. Cavalcanti, por momentos trabalhando na contenção, por outras caminhando para o patético, faz rir mas também silencia o riso. E Thomé faz uso interessante de sua comicidade, mais expansiva do que a colega.
Nessas descobertas do eu, do outro e do mundo, a imagem do Pelicano ferido que invade a casa de Anna traz em si os perigos da vida mas também a necessidade de sobreviver, ainda que seja difícil enfrentar a si, ao outro, ao mundo; ainda que acumulemos nossos erros e esqueçamos de nossos acertos até que uma gota transborde o copo. Nesse momento, talvez não se ver seja passar a não existir. A violência destrutiva da descoberta é real; devemos engolir-nos. Quebrar espelhos é parte de se reconhecer.
por Amilton de Azevedo, para Ruína Acesa
FICHA TÉCNICA
texto de Stef Smith
tradução Cristina Cavalcanti
direção Bruno Perillo
elenco Cristina Cavalcanti
Daniel Veiga
Tatiana Thomé
cenografia Marisa Bentivegna
figurinos Marichilene Artisevskis
iluminação Aline Santini
trilha sonora Gregory Slivar
preparação corporal Marina Caron
projeto gráfico Jiboia Estúdio
assistente de direção Fábio Mráz
produção e realização Visceral Companhia
GALERIA
Fotos de Rodrigo Menck