Quando parente é serpente
Por trás de Fu Manchu pode estar Freud. É o que insinua o dramaturgo Alan Ayckbourn em A Serpente no Jardim. Alan é inglês como Sax Rohmer, criador de Fu Manchu, o enigmático gênio do crime. Os britânicos são mestres do gênero, de Arthur Conan Doyle com o lendário Sherlock Holmes, passando por Rohmer até se chegar a Agatha Christie, que conseguiu a celebridade de pop star.
Nenhum deles, porém, quis ir além do entretenimento inteligente e bem escrito, enquanto Ayckburn usa o enredo policial como pretexto. O espectador tanto pode ter o prazer de morrer de medo, e sair aliviado do teatro, como levar para casa questões de caráter psicanalítico. Porque na peça nada é "elementar, meu caro Watson". A engrenagem da ação está naquelas sombras da mente que deram bastante trabalho ao dr. Freud.
Na peça, há duas irmãs que se odeiam, uma herança e uma ex-empregada que sabe coisas inconvenientes. Matá-la é tão óbvio como o mordomo ser o assassino, mas esse clichê pode ser transformado em uma voz nas trevas. Ameaça. Ayckbourn é claro: "Os fantasmas estão dentro de nós, nascidos de um passado que continua a nos assombrar, memórias reprimidas que viram pesadelos da nossa imaginação, que vagueiam dentro de nossa cabeça quando deitamos no escuro". Aí está todo Alfred Hitchcock, aliás outro inglês. O cineasta entendia de sentimento de culpa. Pois culpas e cobranças dominam o texto em meio a ressentimentos e uma centelha de loucura. Se a esse emaranhado de espantos é acrescentada uma dose dupla de humor negro, aí temos algo realmente bom; e é o que Ayckbourn oferece.
As irmãs refazem um trajeto familiar em que rejeição paterna e competição infantil se igualam em perfídias. Ao fundo da guerra doméstica, despontam um ou outro atrito entre classes sociais. Vale para qualquer tempo e lugar. Nesse aspecto, o espetáculo está mais próximo dos grupos experimentais e distante do mero passatempo comercial.
São artistas afinados com as "novas teatralidades" e os "processos colaborativos" (leia-se tentativa de um "novo teatro", por assim dizer) que vicejam ardorosamente nas artes cênicas, mas sem nenhum medo do retorno à tradicional forma do texto consagrado e no palco italiano. Pode-se também inovar com regras e fórmulas antigas.
Na novela policial acontece o mesmo. Depois dos crimes de Fu Manchu, pura imaginação, surgiu o thriller ideológico de John Le Carré (O Espião Que Veio do Frio), a psicopatia sob a normalidade burguesa nas obras-primas de Patrícia Highsmith (com o amoral Ripley) e, mais recentemente, o sueco Henning Mankel que, em Assassinos Sem Rosto, aborda a xenofobia que se infiltra em uma das mais prósperas e democráticas nações europeias. Dá o que pensar.
Nessas tramas, o cinema leva vantagem graças aos recursos dos closes, cortes e edição com efeitos especiais. Uma das façanhas do diretor Alexandre Tenório é justamente a de impor ritmo e clima cinematográficos à sua encenação com uma hábil combinação de sons e luzes em um cenário repleto dos inevitáveis símbolos do suspense e/ou terror (subsolos, alçapões, fumaça). Nada porém funcionaria sem um elenco adequado na precisa intensidade entre o histrionismo paródico e o realismo feroz. É o que fazem à perfeição Lavínia Pannunzio, Alejandra Sampaio e Cristina Cavalcanti. Beleza de afinação de talentos.
Com porte insolente, um jeito nervoso, Lavínia segura o início do espetáculo que parece não querer decolar, e em seguida se desdobra em atitudes insólitas e divertidas. Alejandra tira inteligentemente o máximo efeito do seu papel. Sabe transmitir ameaças. Cristina Cavalcanti é brilhante na composição da mulher que se desmonta lentamente entre a agressividade alcoólica, decadência física e insanidade. As três instauram um clima delirante, com ironia pesada que indica haver algo mais submerso naqueles acontecimentos. Se Freud explica, A Serpente no Jardim complica com divertida crueldade.
por Jeferson Del Rios, para O Estado de São Paulo
FICHA TÉCNICA
texto de Alan Ayckbourn
direção e tradução Alexandre Tenório
elenco Alejandra Sampaio
Cristina Cavalcanti
Lavínia Pannunzio
cenografia Alexandre Tenório
figurinos Cristina Cavalcanti
iluminação Aline Santini
trilha sonora Eduardo Agni
produção executiva Adriana Florence
assessoria de imprensa Ofício das Letras
produção Leopoldo de Léo Júnior
realização Visceral Companhia
GALERIA
Fotos de Lígia Jardim.